O que é a Personalidade - parte 1 - Freud e a psicanalise
Personalidade é uma palavra com múltiplos significados. No nosso dia-a-dia podemos ouvir expressões como "ele não tem personalidade", "tem uma personalidade forte" ou "tem uma personalidade agressiva". Quando mergulhamos na psicologia da personalidade, o termo tem ainda mais significados. Mas há um consenso.
Personalidade é uma organização complexa de cognições, afetos e comportamentos que dá direção e coerência à vida de uma pessoa. Personalidade consiste em estruturas e processos de natureza biológica, psicológica e social.
Assim definiu Pervin (1996, p.414). Vamos ver o que ela significa: A personalidade é um conjunto de "coisas" de dão direção e coerência à pessoa. Essas coisas são de natureza biológica (genética, doença orgânica, aspeto físico), cognitiva (pensamentos, memórias, preocupações), afetiva (emoções, sentimentos, humores), comportamental (as coisas que fazemos) e social (o ambiente externo que nos acompanhou desde o útero à atualidade).
Basicamente a personalidade é uma união de processos biológicos, psicológicos e sociais. No entanto isto não ajudar muito na hora de tentar perceber os comportamentos das pessoas. Por isso, existem outros modos de ver a personalidade, nesta serie de artigos vamos explorar os mais importantes.
1. Freud e a personalidade de acordo com a Psicanalise
1.1. O modelo do iceberg
O modelo do iceberg é uma metáfora popular, que explicita a personalidade na psicanálise de Freud.
A ponta do iceberg (acima do nível da água), a mente consciente, é aquilo do qual temos consciência neste preciso momento, tal como pensamentos, memórias, emoções e fantasias. Logo abaixo do nível da água, está a mente pré-consciente, isto é, tudo aquilo que embora não seja consciente, pode ser acedido conscientemente, como as nossas memórias do que comemos ontem ao almoço.
Maior que essas duas partes acessíveis, está a mente inconsciente, onde estão processos mentais automáticos e coisas que não são facilmente elevadas à consciência por serem demasiado dolorosos para lidar com eles conscientemente, tais como pulsões motivacionais, memórias ou pensamentos reprimidos.
Simultaneamente, existem na personalidade 3 estruturas psicológicas: Id, Ego e Superego. O Id localiza-se exclusivamente na mente inconsciente, enquanto as outras duas estruturas existem nos três níveis da mente, mas em diferentes graus.
1.1.1. O id
O Id representa as nossas necessidades biológicas. É a energia motivacional (pulsão) para satisfazer uma necessidade orgânica, como comer e sexo. A energia motivacional do Id pode ser dividida em duas categorias:
Eros, libido ou instintos vitais: referem-se à energia que nos motiva na direção da paixão, reprodução, reduzir a fome e evitar a dor;
Thanathos ou instintos de morte: estes referem-se ao desejo inconsciente de regressar ao estado inanimado de onde surgimos e motivam-nos para comportamentos agressivos (incluindo lesões autoinfligidas e suicídio).
A acumulação de energia do Id produz tensão e desconforto inconsciente, portanto ocorre uma pulsão imediata para reduzir essa tensão na forma de desejo (isto é denominado de Princípio do Prazer), independentemente das consequências desse comportamento.
Assim para descarregar esta energia, o Id cria desejo, uma imagem mental de um objeto, para onde direciona essa energia de uma forma rápida e irracional (processo primário - pré-racional). Porém uma imagem mental não serve para satisfazer as necessidades do Id e é preciso descarregar as energias no objeto real (e.g., a imagem mental de um hambúrguer não satisfaz o desconforto da fome). No sentido de mediar os impulsos inconscientes do Id e as exigências do mundo externo (e.g., não ter dinheiro para comprar um hambúrguer), o ego desenvolve-se.
Nota: por objeto, refiro-me a qualquer substância existente, como pessoas, partes do corpo, objetos materiais, pintura artística, música, etc.
1.1.2. O ego
O objetivo do Ego é a preservação do organismo, que acontece na ténue linha entre a satisfação das necessidades do Id e as exigências do mundo externo. O Ego é responsável por identificar os objetos reais representativos das imagens mentais que o Id conjura para a satisfação dos seus desejos. Por exemplo, se o Id conjura a imagem de um alimento para satisfazer a necessidade de fome, mas acontece que não há comida disponível naquele momento, cabe ao Ego conceber um plano para gratificar essa necessidade.
O Ego tem a capacidade de adiar a gratificação das pulsões do Id. Ele opera pelo processo secundário, isto é, envolve pensamento lógico, ponderado e racional. Todavia, após os primeiros anos da infância forma-se a partir do Ego uma outra estrutura psicológica: o Superego.
1.1.3. O superego
O Superego desenvolve-se no Ego pela interiorização da influência das figuras parentais da criança. Desta forma, o Superego é o conjunto dos valores morais e padrões de raciocínio das figuras parentais (ou seja, os comportamentos da criança que os pais valorizam com recompensas ou castigam com punições) e, de forma indireta, da sociedade em geral.
Outra forma de pensar sobre o Superego é perceber que, enquanto na primeira infância foi o trabalho dos cuidadores controlar as ações da criança e dizer-lhe o que é certo e errado, posteriormente é o trabalho do superego exercer esse controlo parental na forma de autocontrolo (na linguagem do dia-a-dia chamamos a esta parte do Superego de "ter consciência").
Por vezes, o que é socialmente certo ou errado está em oposição com os desejos do Id, nestas situações o superego inibe tais desejos.
O Superego constitui também as aspirações da pessoa, aquilo que valoriza e deseja alcançar (o Ego ideal), então impele para a satisfação dessas aspirações da mesma forma que o Id.
1.2. A Personalidade
Nesta perspetiva, a personalidade é a forma como a energia do Id é distribuída e utilizada pelo Ego e o Superego.
Ainda no Id, a energia psíquica não está completamente fixada aos objetos mentais (desejos), o que significa que pode ser redirecionada ou reutilizada por outra estrutura psicológica. O Ego identifica um objeto real que permite a satisfação do Id e redireciona essa energia para pôr em prática o que quer que seja necessário para alcançar esse objeto. De certa forma, enquanto o Ego satisfizer os desejos do Id, é o Ego que controla a energia psíquica existente e, aí, pode utilizá-la para outros propósitos pessoais (e.g., estudar, dar passeios, basicamente todas as atividades que não estão envolvidas na satisfação do Id), desde que, claramente, continue a assegurar as necessidades do Id, pois se falhar, a energia volta ao controlo do Id.
Geralmente, a trabalhar em oposição aos desejos do Id (sobretudo os sexuais e de agressão) estão os valores sociais interiorizados no Superego. O Supergo, como parte do Ego, tem o mesmo acesso à energia psíquica. Desta forma o Superego impele para a pessoa ter comportamentos virtuosos ou perfecionistas como dita a sociedade ou como ditaram as figuras parentais da pessoa. Assim, enquanto o Ego tem que descobrir e agir na satisfação do Id, também tem que gerir as pressões constringentes do Supergo que tanto podem ser na forma de moralismos daquilo que o Ego pode ou não fazer para satisfazer o Id, como na forma de perfecionismo, que não importa o que o Ego faça, nunca vai ser bom o suficiente.
Conforme uma estrutura exerce mais ou menos pressão, a dinâmica da personalidade muda e após a adolescência a dinâmica entre o Id, Ego e Superego está mais ou menos estabilizada (por exemplo, a personalidade de uma pessoa poderia ser 15% dominada pelo Id, 75% dominado pelo Ego e 10% pelo Superego). Porém, a personalidade é uma eterna batalha do Ego a tentar estabelecer a paz entre os instintos primitivos da pessoa e as regras impostas pela sociedade em que habita. E, tudo isto produz ansiedade.
1.3. Os famosos mecanismos de defesa
Para lidar com tanta pressão, o Ego desenvolveu mecanismos de defesa para se proteger, aliviando instantaneamente a tensão interna. Os mecanismos de defesa operam inconscientemente e de alguma forma negam, fabricam ou distorcem a realidade. Muito do estudo sobre estes mecanismos foi realizado por Anna Freud.
Repressão
Repressão foi um dos primeiros conceitos de Freud. Consiste no perdurar ativo de conteúdos psicológicos (e.g., memórias) no inconsciente Id, ou seja, o Ego está constantemente a despender energia para manter algo fora da mente consciente. Contudo, este mecanismo poderia ter consequências, pois o material reprimido continua a exercer pressão para se exprimir, podendo originar sintomas físicos como dor de cabeça, urticaria, perca de visão, perca de sensação em partes do corpo ou mesmo o uso de alguma função como o uso das pernas... Outro modo cujo o material se poderia libertar seria na forma de um deslocamento, por exemplo, estar furioso com alguém que não se pode expressar essa raiva e, sem se aperceber, descarregar noutras pessoas.
A repressão continuaria a causar problemas na vida da pessoa até haver, finalmente, condições para o seu conteúdo se tornar consciente e ser expresso de forma segura. Esta conclusão foi feita por Freud quando observou que pacientes cujos sintomas não tinham nenhuma explicação física e desapareciam quando era proporcionada a oportunidade de falar sobres as suas origens e significados.
Negação
Negação envolve bloquear ou distorcer a perceção de eventos perturbadores. A pessoa não reconhece (ou recusa-se a reconhecer) algum aspeto doloroso da realidade externa ou da experiência subjetiva que seria aparente para os outros, conjurando muitas vezes histórias ou explicações que suportam a sua interpretação dos factos.
Por exemplo, durante a pandemia COVID-19 houve relatos de muita gente não acreditar na existência do vírus ou de menosprezar a sua importância e, apesar da extensa cobertura dos media a níveis nacionais e internacionais, para algumas pessoas era mais plausível que se tratasse de uma conspiração.
Projeção
Projeção envolve atribuir falsamente a outras pessoas, os desejos do Id que o Ego não consegue lidar. A projeção funciona na medida em que continua a permitir um certo grau da expressão do desejo do Id, pois substituí um desejo perturbador por um menos perturbador. Como exemplo, uma pessoa poderia sentir-se zangada com alguém, mas em vez de reconhecer isso, diria que a outra pessoa é que está zangada com ela. Num outro exemplo, uma pessoa poderia ser homossexual, mas sem o reconhecer, ficaria era preocupada que os seus amigos(as) fossem homossexuais e estivessem interessados nele(a).
Existem muitos outros mecanismos de defesa, mas não serão referidos neste texto.
1.4. O estado da evidência científica atual desta perspetiva
Uma grande parte da perspetiva de Freud, que se estende além daquilo do que aqui foi exposto, foi questionada em meados dos anos 60, na medida em que não pode ser refutada nem comprovada. Alguns conceitos como repressão foram altamente postos em causa. Diversos estudos não encontraram evidência de tal processo psicológico, explicando que a dificuldade que algumas vítimas de trauma têm em se lembrar dos eventos traumáticos é melhor explicada pelos efeitos do stresse no cérebro, que "danificou" o acesso a essas memórias. Outros mecanismos, como negação, reuniram bastante evidência científica e podem ser encontrados sobre o nome "evitamento experiencial" que se assemelha muito a definição de negação.
Alguns dos insights de Freud tornaram-se relevantes na atualidade. O Id assemelha-se às funções da amígdala, a parte do cérebro geralmente associada às emoções, impulsos sexuais, luta, fuga... O Ego apresenta-se como o córtex prefrontal, que tem a capacidade de regulação emocional. No que concerne ao Superego, sabemos atualmente que algumas das nossas emoções como culpa, vergonha, orgulho e as capacidades para empatia e compaixão evoluiram com a função de coesão social. Quando sentimos estas coisas percebemos se estamos a agir contra ou a favor do nosso grupo de pertença e, frequentemente, restringimos as nossas ações com medo de sentir culpa, vergonha, embaraço...
Até à próxima,
Ricardo Linhares